terça-feira, 6 de abril de 2010

Cadastro reúne filhos separados dos pais que tinham hanseníase

Veja o encontro emocionante de duas irmãs que nunca tinham se visto, e que até o mês passado sequer sabiam que eram irmãs. Maria Teresa e Marisa, hoje com mais de 50 anos, são duas das milhares de crianças brasileiras que foram separadas das mães assim que nasceram e que hoje, adultas, tentam resgatar o passado.



TRANSCRIÇÃO DA MATÉRIA.

A mãe dá à luz, mas não tem direito de receber o filho nos braços. O bebê é levado com pressa e batizado. Mãe e filho são separados à força, talvez para sempre.

“Eu falei: ‘Quero ver minha filha’. Aí eles falaram: ‘Não pode, porque pode ser perigoso para ela’. Eu pensei até em me matar, porque eu pensei: ‘não vou poder criar a minha filha, não vou poder ter contato com ela, não poder fazer nada’. Então, naquele momento eu comecei a imaginar que seria pro resto da vida”, conta Rita de Cássia Barbosa, ex-paciente de um hospital colônia.

Esta cena se repetiu em todos os partos de mulheres portadoras de hanseníase que viviam nos chamados hospitais-colônias. Eles existiram no Brasil entre os anos 30 e 80 do século passado.

Aconteceu com Rita e também com Maria José Amélia. A filha que ela teve em 1956, na Colônia Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes, São Paulo, foi levada para um lugar chamado preventório. Era uma espécie de creche que recebia as "ninhadas" dos então chamados leprosos.

Uma lei federal de 1949 determinava: "Todo recém-nascido, filho de doente de lepra, será compulsoriamente e imediatamente afastado da convivência dos pais".

Muitas dessas crianças foram adotadas, cresceram sem conhecer sua origem. “Na verdade, eu sou duas pessoas. A primeira que nasceu Maura Regina e a segunda que é a Maria Teresa, porque eu sabia que eu era adotada, mas eu não sabia, na verdade, de onde eu tinha vindo”, diz a assistente social Maria Teresa da Silva Oliveira.

Há oito anos, os pais adotivos de Maria Teresa morreram. Só então, o irmão mais velho dela quebrou o silêncio.

“Ele veio com um recorte de jornal que eu tenho até hoje, dizendo: ‘a tua história é essa’. Nessa reportagem tinha a foto de uma ex-paciente chamada Raimunda e liguei pra ela, me identifiquei, falei assim: ‘eu fui adotada aí, só que eu queria saber que caminho eu tenho que tomar pra saber quem eu era’. Aí ela perguntou: ‘Mas você não tem nenhum dado?’ Eu falei assim: ‘Olha, eu nasci em maio de 1956’. Ela falou: ‘por isso já dá para eu procurar nos batistérios, porque nenhuma criança saía daqui sem ser batizada’, conta Maria Teresa.

Ela também tinha outra pista: “A minha mãe dizia que eu ia me chamar Maura Regina, mas depois trocou e colocou Maria Teresa”.

Existia nos arquivos uma certidão de batismo em nome de Maura Regina. Esse foi o nome de Maria Teresa até os 4 meses de idade, até ser adotada.

Quando foi buscar o documento, Maria Teresa descobriu também os dados de duas irmãs biológicas, Marisa e Elza Amélia, e três cartas que a mãe, Maria José Amélia, escreveu ao preventório, buscando notícias dela.

Maria Teresa lê um trecho da carta: “Dona Margarida, estou muito triste por não saber notícias de Maura, nem sequer ter uma fotografia dela. Não conheço a minha filha”.

“Aí em cima tem uma observação de quem pegou a carta, dizendo: ‘Essa carta não sei como responder, já que a filha foi entregue para Seu Antonio’. Ou seja, ninguém quis dizer para minha mãe biológica o que tinha realmente acontecido”, conta Maria Teresa.

Seu Antonio foi quem adotou Maria Teresa. A legislação não falava nada sobre adoção, mas, na prática, elas aconteciam. “A pessoa vai e registra como se fosse um filho biológico. Quem é que vai saber de onde veio? Essa criança apagou o passado. Mas é um passado que ela também não lembra, de uma mãe que nunca conheceu”, explica Yara Nogueira Monteiro, historiadora da hanseníase da USP.

Nos últimos oito anos, Maria Teresa investigou o paradeiro da mãe e das irmãs com a ajuda do Morhan, Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase. A partir do caso dela, surgiu a ideia de criar um cadastro nacional desses filhos separados dos pais.

“Até agora a gente já recebeu mais de 1.200 cadastros”, comemora Artur Custódio, coordenador do Morhan.

Uma lei federal de 2007 concede pensão mensal e vitalícia de R$ 750 aos ex-pacientes de hanseníase que foram isolados à força em colônias até 1986. Mas essa pensão não se estende aos filhos. “O Estado brasileiro tem uma dívida também com essas pessoas e é essa dívida que a gente está querendo a reparação”, defende Artur Custódio.

“Eu não sei se eu mamei, eu não senti o corpo dela no meu”, lamenta Telma Nancy Araújo Ribeiro, filha de portadores de hanseníase. “Para mim, eu não tinha mãe, eu estava ali, porque eu não tinha nem pai, nem mãe, ninguém”, diz Valéria da Silva, filha de portadores de hanseníase.

Telma e as irmãs Valéria e Elizete cresceram em um educandário do Rio de Janeiro. Em 1959, elas apareceram na revista "O Cruzeiro". A reportagem dizia que a infância ali era feliz. Não era. “Eu apanhava. Apanhava todo mundo. E também quando eu fazia xixi na cama, eles me batiam”, lembra Valéria.

“As minhas duas irmãs, elas entraram e saíram de várias adoções. Foram para casas de outras pessoas, ficavam 30 dias, dois meses, e voltavam. E isso, há oito anos vem me preocupando muito. Saber qual foi o destino delas realmente, se elas estão bem, se elas não estão”, comenta Maria Teresa.

Coincidência ou destino, um dos primeiros cadastros a chegar ao Morhan, em nome de Marisa Luchetti, trouxe a notícia que Maria Teresa esperava havia oito anos.

“Eu percebi que o nome da mãe era igual, que elas tinham nascido no mesmo preventório, havia uma série de detalhes que nos faziam crer que elas podiam ser irmãs”, explica Vilma Tavares do Nascimento, secretária do Morhan.

E de fato eram. Depois de mais de 50 anos separadas, Maria Teresa e Marisa se encontraram pela primeira vez.

Maria Teresa descobre que tem cinco sobrinhos. “Eu achei que ele parece comigo”, diz sobre um deles. “É igualzinho. Era isso que eu queria. Alguém que eu pudesse olhar assim e dizer: ‘eu estou em alguém ou alguém que me fez estar em outra pessoa’”.

Maria Teresa leva Marisa para conhecer a colônia onde a mãe delas, Maria José Amélia, viveu. São recebidas por Dona Raimunda, a senhora da foto do jornal que ajudou Maria Teresa a descobrir o verdadeiro nome, e por Amezina Batista dos Santos, que foi amiga da mãe delas. As duas moram ali até hoje.

“A minha mãe perguntava das filhas? Ela tinha saudade das filhas?”, quer saber Maria Teresa. “Tinha. Eu falava do meu filho pra ela, ela falava das filhas e aí a gente até se emocionava e ficava chorando junto”, lembra a aposentada.

Em 1988, Maria José Amélia deixou a colônia. Disse que ia pra São Paulo atrás de uma filha. É a última notícia que se tem dela. “Eu tenho pra mim que ela deve estar viva”, acredita Maria Teresa. “Eu também acho. Eu tenho por mim que ela não foi de se entregar não”, concorda Dona Amezina.

Muitas mulheres passaram pelo drama de Maria José Amélia e não se entregaram. “Quando a gente quer um filho perto da gente, a gente dá um jeito”, diz Rita de Cássia Barbosa.

Rita teve Geovana quando era paciente de uma colônia no Rio de Janeiro. Para poder ver a filha, ia disfarçada até o educandário e a levava escondida para casa.

“Eu agradeço muito que ela fez isso por mim, ou a gente não ia ter esse elo. Eu acho que eu não teria essa coragem, ela foi guerreira”, elogia Geovana Fereira Barbosa, filha de Rita.

Hoje o Brasil tem aproximadamente 40 mil novos casos de hanseníase por ano. Fica em segundo lugar no ranking mundial em números absolutos de portadores da doença, atrás da Índia. Mas a boa notícia é que, desde os anos 70, a hanseníase tem cura.

“A partir do início do tratamento, 48 horas depois você não mais transmite a doença e pode levar uma vida perfeitamente normal”, explica Ana Cláudia Krivochein, do Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária do Rio.

Mas as marcas do passado persistem. Famílias desfeitas esperam ser reconstruídas. Para as irmãs que se reencontraram, a busca pela mãe e pela outra irmã continua.

http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1556796-15605,00.html

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